Na passagem do sesquicentenário de seu
nascimento (6.3.1853 – 15.12.1930) |
O último 6 de março
assinalou a passagem do sesquicentenário de nascimento de um dos fundadores
desta Casa, José Júlio da Silva Ramos, vindo ao mundo, como quase tudo parece
indicar, na cidade do Recife, em 1853.
Digo ‘como quase tudo parece
indicar’ sua naturalidade recifense, porque assim sempre a proclamou Silva
Ramos, diante da curiosidade de netos, intrigados que estavam do carregado
sotaque lusitano que o avô conservou pela vida fora. Para corroborar essa
pequena ponta de desconfiança existem alguns dados relevantes que um futuro
biógrafo seu terá de examinar com mais profundidade, entre os quais trago à luz
dois. Do arquivo da Universidade de Coimbra chegou-me a certidão de batismo do
nosso homenageado1, onde se declara que o ato religioso ocorreu aos
19 de junho de 1853, na Igreja da Conceição Nova de Lisboa e que o pequerrucho
José Júlio, filho de João da Silva Ramos e de Emília Augusta Apolinário Ramos
nascera em Lisboa.
O outro dado, não intrigante
como o anterior mas também não desdenhável, consiste na omissão do nome do
nosso acadêmico no Dicionário
Bibliográfico Brasileiro de Sacramento Blake, que não deixa de arrolar, em
dois momentos o pai pernambucano. É bem verdade que contamos com possível
incompletude, lembrada pelo próprio operoso bibliófilo; mas estranha que
faltasse informação de um já professor do Colégio Pedro II (1898), de cujo pai
se ocupara Sacramento Blake com boa largueza de informações.
Mas não fôsteis convidados a
esta sessão para uma escavação de ordem biográfica do nosso ilustre
homenageado, e sim para revivermos juntos os consagrados méritos que o
guindaram ao quadro dos trinta primeiros que pensaram e arquitetaram a construção
deste cenáculo acadêmico, cada vez mais respeitado e amado do povo brasileiro,
como síntese harmoniosa de sua pujança cultural e literária.
Acostumado e afeito às tertúlias
literárias de sua longa permanência em Coimbra e em Lisboa, e causeur cintilante
que era, as reuniões da Academia, ao lado de poetas, romancistas, críticos
e jornalistas, traziam-lhe à lembrança e à saudade os doces momentos de convivência
com João de Deus, Guerra Junqueira, Cesário Verde e muitos outros. De tal
modo lhe eram gradas as sessões acadêmicas, que se inscreve entre os mais
assíduos. Para terdes uma idéia dessa assiduidade, basta-vos dizer que das
89 realizadas entre 1896 e 1908, sob a presidência de Machado de Assis, assistiu
a 69, juntamente com João Ribeiro, só atrás de José Veríssimo, com 79, e do
presidente, com presença quase integral.
Sua doação à Casa e o
talento que seus confrades lhe conferiam devem, certamente, ter pesado para que
fosse, na sessão de 18 de janeiro de 1897, eleito para ocupar o cargo de 2º
Secretário com vista a integrar a primeira diretoria completa, juntamente com o
1º Secretário, Rodrigo Otávio.
Nas homenagens que
justamente lhe foram tributadas in
memoriam, no seu falecimento,
ocorrido em 1930 e no transcurso do 1º centenário de nascimento, em 1953, os
pontos de exaltação incidiram na sua produção de poeta, jornalista e tradutor,
embora não lhe fossem esquecidos os méritos de excelente filólogo e exímio
professor de Língua Portuguesa.
Sobre Silva Ramos recaíam os
votos da crítica de então elogiando o delicado poeta romântico com ressalto de
sua veia lírica, denunciada na epígrafe de Alfredo de Musset “L’amour est
tout... Aimer est le grand point...” com que abria seu único livro de versos, Adejos, publicado em Coimbra, em 1871,
registrando-lhe os arroubos juvenis dos dezesseis aos dezoito anos.
Ressaltava-se-lhe também o cronista encoberto no pseudônimo Julio Valmor da A Semana e outros órgãos da imprensa
fluminense e, com não menos ênfase, o professor de nomeada, estimulador de
estilistas e incentivador de futuros cultores do idioma.
Os dotes de sua poesia, é
bem verdade, foram exageradamente exaltados pelo paulista que lhe sucedeu nesta
Casa, o inspirado autor de Vida e Morte
do Bandeirante, Alcântara Machado. Outro ocupante da mesma cadeira nº 37,
sessenta e sete anos depois, com o peso de sua autoridade de excelente poeta,
melhor os ajuizou. Eis as palavras do nosso confrade Ivan Junqueira no seu
discurso de posse, acerca de Adejos:
“ (...) esses versos de Silva
Ramos, além de irremediavelmente datados, refletem antes, ou tão somente,
os arroubos de um espírito ainda em ebulição e as fundas influências que recebeu
em Coimbra, as quais seriam decisivas para a sua sólida formação de gramático
e filólogo” (Discurso, pág. 11).
Todos os discípulos que
tiveram a honra de lhe assistir às aulas são unânimes em aludir ao amor ao
idioma que inoculava em seus ouvintes, à interpretação reveladora das
excelências lingüísticas escondidas nos textos literários e a vivacidade com
que, no sotaque lusitano, emprestava à leitura de trechos literários recolhidos
na mais clássica e de bom gosto seleta escolar, a Antologia Nacional de Fausto Barreto e Carlos de Laet.
Silva Ramos perscrutava os
meios estéticos de expressão utilizados nos textos literários, reconhecendo-lhes
e decifrando-lhes ‘a indocilidade com que eles recebiam a rigidez de normas
inflexíveis’, para trazermos aqui uma frase feliz do saudoso Barbosa Lima
Sobrinho, em saudação à passagem do centenário do ilustre filólogo.
Neste sentido são extremamente
reveladores os depoimentos de seus numerosos alunos, entre os quais lembrarei
apenas dois, o de Manuel Bandeira e o de Sousa da Silveira, ambos filólogos
que, já adultos, recordavam as aulas do nosso homenageado a crianças do 1º ano
da turma de 1897 do Ginásio Nacional, denominação, àquela fase republicana, do
Colégio Pedro II.
“Ainda hoje recordo – diz-nos
Bandeira – a maravilhosa lição que foi a leitura que fez da “Última corrida
real de touros em Salvaterra”: não só tenho bem presente na memória o quadro
objetivo da sala de aula, a atitude
dos colegas, a figura subitamente remoçada do mestre, a voz com todas as suas inflexões mais peculiares, como também todas
as imagens interiores evocadas pelo surto eloqüente da leitura: o garbo e
esplendor da ilustre Casa de Marialva ficou para sempre dentro de mim como
um painel brilhante. Na verdade em um ponto da minha consciência quedou armado
um redondel definitivo para essa última corrida de touros em Salvaterra, a
qual nunca deixou de ser uma das festas preferidas da minha imaginação. A
tal ponto, que longe de ser a última,
passou a ser a eterna corrida de touros, eterna e única, pois foi a primeira
que vi – porque positivamente a vi! – e me fez achar insípidas, mesquinhas,
labregamente plebéias as verdadeiras touradas a que assisti depois com os
olhos do corpo e não com os da imaginação excitada pelo gosto literário do
mestre.”
O testemunho de Sousa da
Silveira revela-nos o filólogo que aceita aquela indocilidade à rigidez de
regras inflexíveis a que atrás referi. Falando a Homero Senna acerca do mestre,
lembra Sousa fatos de língua que já denunciam a argúcia do futuro comentador de
textos:
“Nesse primeiro ano do Ginásio encontro, entre os professores, Silva
Ramos, de saliente e forte personalidade, embora disfarçada pela sua modéstia e
encantadora simplicidade. Posso dizer que foi ele quem primeiro me chamou a
atenção para as belezas do idioma que falamos e para os recursos do estilo.
Lembra-me, por exemplo, que em classe fazia ressaltar as onomatopéias que se
encontram na célebre página de Camilo referente ao suplício da Marquesa de
Távora. Na “Última corrida de touros em Salvaterra”, de Rebelo da Silva, entre
muitas outras coisas, o velho mestre salientava a impressão de ansiedade que,
em certa altura, se traduz pela sucessão de períodos curtos. Também não me
esquecerei jamais de que nos versos de Gonçalves de Magalhães, relativos à
descrição do Amazonas, indicou-nos o efeito dos dois proparoxítonos usados pelo
poeta para sugerirem a idéia de largura e vastidão do rio:
Baliza
natural, ao norte avulta
O das águas
gigante caudaloso
Que pela
terra alarga-se vastíssimo.
Ora... outro professor, a respeito
de tais versos, nos teria dito que os nossos românticos não se preocupavam
muito com a correção da língua e colocavam desordenadamente os pronomes. Censuraria,
com certeza, Magalhães por ter colocado o pronome átono depois do verbo na
oração subordinada relativa e ainda por cima depois de um adjunto adverbial.
E não seria de admirar que, se fosse versejador, sugerisse aos alunos uma
emenda, substituindo um verso, como o de Magalhães, belo e sugestivo, por
outro corretíssimo, do ponto de vista gramatical, mas sem nenhum poder de
expressão. Foi com Silva Ramos que adquiri o gosto do gênero de comentários
que tenho feito à obra de alguns autores nossos e portugueses, de que pode
servir de exemplo a edição crítica que organizei das poesias de Casimiro de
Abreu... Esses comentários têm suas raízes nas lições do querido professor,
o qual lançou em meu espírito sementes que frutificaram... Sabia fazer com
que os alunos tomassem gosto pelo estudo da língua. E o mais importante...
é que lecionou à nossa turma apenas durante o ano de 1897. Mesmo assim, pôde
influir fortemente em meu espírito”.
Na oportunidade deste
sesquicentenário desejo mostrar-vos, em modesto bosquejo, um Silva Ramos
eminentemente filólogo, no mais amplo sentido de que se reveste o termo, com um
embasamento teórico que raramente se encontra nos seus contemporâneos, numa
época de formação superior autodidata dentro de um momento histórico altamente
renovador nos métodos de estudo científico da linguagem e das línguas,
especialmente modernas, cujo marco deflagrador, nas pegadas de Frederico Diez,
se acha assinalado, em Portugal, a partir de 1869, com a produção pioneira de
Francisco Adolfo Coelho e, no Brasil, em 1878, com a Gramática Histórica,
de Pacheco da Silva Júnior e, em 1881, com a Gramática Portuguesa, de
Júlio Ribeiro.
Silva Ramos, sem nos deixar
uma obra orgânica sobre nossa língua, estava a par dos princípios metodológicos
mais correntes no seu tempo, princípios metodológicos a que chamava “estudos
positivos dos fatos da linguagem (...) que constituem a ciência das línguas”.7
Sabia a posição mais correta e operacional em que deviam ficar tais princípios
na tarefa de ensinar a língua a jovens estudantes ginasianos: por trás do
mestre, orientando e disciplinando seu discurso lingüístico e metalingüístico,
e não fazendo desses princípios e das questões complexas que envolvem o assunto
da aula.
Graças ao empenho e
iniciativa editorial de Laudelino Freire, podemos contar hoje com uma coletânea
de prosa, poesia e algumas lições de Língua Portuguesa, vinda à luz em 1922,
intitulada Pela Vida Fora. Caberá à
Academia, no prosseguimento da homenagem de hoje, reeditar em breve essa
coletânea, acrescida de outras lições esparsas em jornais e revistas, além de
um opúsculo que pouco parece na sua bibliografia, A Reforma Ortográfica e a Academia Brasileira de Letras, 1926.
Expôs seu ideário
didático-pedagógico em mais de uma oportunidade; lembrarei uma de suas lições
no artigo que escreveu para o número inicial da Revista de Cultura, do
Padre Tomás Fontes, em 1927, com o título de “Em ar de conversa”:
“Toda nação tem o seu código
de bem falar e escrever em que se instruem os naturais até aos quinze ou aos
dezasseis anos, e cada qual procura exprimir-se de acordo com ele, abandonando
os problemas da língua aos filólogos e aos gramáticos a quem compete
destrinça-los.
Entre nós, que sucede? Os
estudantes de português e muitos dos que escrevem para o público descuram
inteiramente da gramática elementar para se interessarem pelas questões
transcendentais: a função do reflexivo se, se ele pode ou não figurar
como sujeito, o emprego do infinitivo pessoal e do impessoal, qual o sujeito do
verbo haver impessoal e outras que tais cousas abstrusas que nada
adiantam na prática”.
O apuro científico de Silva Ramos está presente em muitas de suas declarações
sobre fatos da língua; um mergulho nelas, por superficial que seja, nos revela
o princípio ou os princípios em que se assentam. Quando se alude ao mestre,
logo acodem à lembrança palavras suas que se tornaram clássicas e assumiram
até certo ar anedótico, como aquela afirmação: “eu não sei como se colocam
os pronomes, pela razão muito natural que não sou eu quem os coloca, eles
é que se colocam por si mesmos, e onde caem, aí ficam”.
Por trás deste comentário
aparentemente inocente, há um punhado de princípios metodológicos que cabe
trazer à luz para análise. O primeiro deles é, novidade àquela quadra dos
estudos de linguagem, a introdução dos fatores de fonética sintática e de
entoação frasal como motivadores de fatos de distribuição de termos oracionais,
especialmente do jogo de vocábulos tônicos e átonos no boleio da frase. Não se
tratava mais da famosa explicação por atração dessa ou daquela palavra, mas sim
pelos fenômenos de entoação, tema então recente entre estudos de fonética
praticados especialmente pelos lingüistas alemães, revelados de maneira
inovadora por M. Said Ali, em artigo na Revista
Brasileira, a 1 de março de 1895, de cuja lição só Silva Ramos soube
extrair orientação para seu magistério, pois não a vemos exarada nas melhores e
mais correntes gramáticas da época, que ainda insistiam na improdutiva e falsa
teoria da atração vocabular.
Ainda nas pegadas de Said
Ali e como corolário da nova teoria da entoação frasal, pôde Silva Ramos
compreender que, estando a distribuição dos pronomes oblíquos sujeita ao ritmo
frasal e que esse ritmo era diferente entre brasileiros e portugueses, natural
seria que a colocação não coincidisse nos dois espaços geográficos – o
americano e o europeu. E mais: que o brasileiro teria direito a esse uso,
recriminado pelos portugueses. Eis lição de Silva Ramos, em 1914, comentando os
Novíssimos Estudos da Língua Portuguesa,
de Mário Barreto.
“Acreditamos, entretanto,
que, quando o professor Mário Barreto se dispuser a tratar o assunto com a
amplitude que ele comporta, a conclusão a que terá de chegar, necessariamente,
em face dos princípios da ciência que tanto acata e venera, é que a situação do
pronome átono na proposição, tanto no Brasil como em Portugal, é determinada
exclusivamente pelo ritmo, diferente numa e noutra região, consoante a
tonicidade e o valor dos fonemas que não condizem aquém e além-mar.
O fenômeno é puramente de som,
daquela fonética de que fala Brugmann, que considera a frase como “uma unidade
fonética completa em si mesma”.
Em 1907, na prova escrita do
concurso a que se submeteu para preenchimento de cátedra do Colégio de Pedro
II, não fora diferente a sua lição:
“Seja como for, o regulador
único da distribuição dos pronomes átonos na locução brasileira é igualmente o
ritmo, governado por princípios de que os naturais do Brasil não têm a mínima
consciência, como os que nasceram em Portugal não a têm dos que regulam a
cadência da locução portuguesa. Ora, tentar reduzir o ritmo, o número, a
cadência da linguagem brasileira ao ritmo, ao número, à cadência da linguagem
portuguesa é irracionável empreendimento (...)
Ora, dependendo
exclusivamente a situação dos pronomes átonos brasileiros da fonética peculiar
ao Brasil, como se pôde originar essa preocupação dos gramáticos e mestres do
vernáculo, entre nós, de estabelecerem regras para a colocação daqueles
elementos, de acordo com os hábitos do falar português, a ponto de ter o
assunto servido de tema para uma tese de concurso no Colégio de Pedro II?
Essa singularidade veio a gerar-se
da maneira seguinte: José Feliciano de Castilho, português, a cujo ouvido
mal toava a construção brasileira, lembrou-se de censurar a José de Alencar
pela forma por que ele usava colocar os pronomes. Ora, se o ilustre escritor
e crítico se tivesse limitado a afirmar que a fraseologia do autor de Iracema se afastava, nesse particular,
dos bons modos da língua vernácula, nada haveria que lhe opor: ele, porém,
não se ficou por aí: pretendeu sustentar, de clássicos em punho, que sempre
eles obedeceram a uma norma, na maneira como colocavam os pronomes; e entrou
a deduzir regras. Foi o que o perdeu. Alencar defendeu-se galhardamente. Choveram
de todos os lados contestações. A autoridade contrapunha-se autoridade, a
citação retorquia-se com citação. Castilho quase perde a cabeça (...) Os nossos
gramáticos correram açodados a sancionar a doutrina de Castilho, estabelecendo
regras que todas padeciam de fraqueza orgânica, visto como repousavam todas
em considerações reportadas à sintaxe e à morfologia, que nada têm que ver
com a espécie: atração para o sujeito, afinidade para as subordinativas, solicitação
por parte das negativas, e quejandas relações, que deviam embaraçar muito
seriamente (...) os que têm por ofício manipular os acepipes literários”.
A visão científica com que
Silva Ramos investigava a linguagem e os fatos da língua portuguesa
habilitara-o a tratar com a superioridade que não se encontrava nos gramáticos
da sua época, ainda os mais bem informados, a existência das variedades de uma
mesma língua histórica, diversificadas em diferenças cronológicas, regionais,
sociais e estilísticas, em todas as dimensões de concretização dos seus atos de
língua. Está claro que se encontram em estudiosos de todas as épocas
percucientes intuições dessas variedades, mas não fazem delas emprego
operacional e funcional. Considerar uma língua não como um bloco homogêneo e
unitário, mas como um diassistema, vale dizer, um complexo conjunto de
variedades, é conceito bem moderno na ciência das línguas. Silva Ramos,
estilista e funcionalista avant la lettre, tirava partido dessa
realidade nos artigos sobre que doutrinava os adultos e nas lições em que
instruía os alunos.
Como as grandes figuras,
estava a par das doutrinas em que se havia educado, mas não deixava de procurar
aperfeiçoar conceitos e métodos. Assim é que a lingüística antes do seu tempo
se caracterizara pelas raízes do método evolucionista e naturalista, segundo
cujos preceitos as línguas eram emparelhadas aos organismos vivos, sob a égide
das ciências naturais, que nasciam, cresciam, se desenvolviam e morriam
independentes da vontade dos homens.
Recebeu também Silva Ramos
as luzes do método histórico-comparativo alemão e a ele acrescentou o ideário
sociocultural da escola do americano Whitney. E mais avante acrescentou, já no
final da vida e da ocupação magisterial, os ensinamentos incipientes do
psicologismo francês de Ferdinando Brunot, em La pensée et la langue,
saído em 1922.
Registrem-se diferenças de
visão da linguagem e das línguas nos dois excertos seguintes; o primeiro,
datado de 1918, tipicamente fiel a um ideário naturalista em que a linguagem é
uma proprietária biológica do homem. Neste sentido, vê como um processo
fatalista de evolução as diferenças que se vão criando entre o português do
Brasil e o português de Portugal, que haverão de favorecer o surgimento de um
dialeto brasileiro independente:
“O que particularmente nos
poderia interessar a nós brasileiros, como se depreende das consultas
endereçadas freqüentemente aos professores de português, era saber se está
próxima ou remota a emancipação do dialeto brasileiro, a ponto de se tornar
língua independente.
A dialetação, como bem
sabeis, é um fenômeno natural que a ninguém é dado acelerar ou retardar, por
maior autoridade que se arrogue; ao tempo, e só ao tempo, é que compete
produzi-lo. As línguas românicas foram dialetos do latim, um dos dialetos por
sua vez do ramo itálico, dialeto ele próprio da língua dos árias; não pode
haver, portanto, dúvida mínima, para quem aprendeu na aula de lógica a induzir,
que o idioma brasileiro, de dialeto português que ainda é, chegará a ser um dia
a língua própria do Brasil.
Que poderão, entretanto,
fazer os mestres neste momento histórico da vida do português na nossa terra?
Ir legitimando pouco a
pouco, com a autoridade das nossas gramáticas, as diferenciações que se vão
operando entre nós, das quais a mais sensível é a das formas casuais dos
pronomes pessoais regidos por verbos de significação transitiva e que nem
sempre coincidem lá e cá; além da fatalidade fonética que origina
necessariamente a deslocação dos pronomes átonos na frase, o que tanto
horripila o ouvido afeiçoado à modulação de além-mar.
Consentiremos que os nossos
alunos nos venham dizer que assistiram festas, responderam cartas,
obedeceram ordens, perdoaram colegas e que, em compensação,
assegurem aos mestres que lhes estimam, que se lhes não visitam
com freqüência, é que receiam incomodar-lhes e que se lhes não
saudaram na rua, foi que lhes não viram.
Por mim, falece-me autoridade
para sancionar tais regências, nem acredito que qualquer dos meus colegas
se abalance a tanto. E, contudo, o que nenhum de nós teria coragem de fazer,
hão de consegui-lo os anos que se vão dobando lentamente”.
Em outro tom é o seguinte
comentário, de 1919:
“A língua não é um ser independente,
não se pode desagregar de todos os outros aspectos da atividade social a que
está intimamente ligada, para se considerar em abstrato; é uma resultante
necessária da vida coletiva nas suas infinitas modalidades. Se conseguirmos,
portanto, assimilar as virtudes das atenienses, atico será o nosso dizer;
se persistirmos em importar, à mistura com os hábitos de elegância, os vícios,
elegantes ou não, dos bárbaros e civilizados, proliferarão os barbarismos
[= estrangeirismos], e se levarmos a desídia ao extremo de nos abandonarmos,
como os habitantes de Soles, segregados da Grécia culta num recanto da Cilícia,
não há fugir aos solecismos e acabaremos todos por falar como a mucama que
tanto me irritou. É fatal”.12
*
* *
Por fim, cabe-nos falar da
maior batalha que Silva Ramos travou nesta Casa: a batalha da ortografia, a
cuja vitória final chegou muitos anos depois de morto, pelo peso científico dos
princípios defendidos nos recuados anos de 1915.
Todas as discussões havidas
nesta Academia sobre sistematização ortográfica, iniciadas com a proposta de
Medeiros e Albuquerque aprovada na sessão de 11 de junho de 1907, se
caracterizaram por um empirismo e, como conseqüência, por soluções que
transgrediam muito do progresso já conseguido lá fora sobre os fundamentos
científicos em que se deveria assentar um tão razoável quanto possível sistema de
representação na escrita do plano fônico da língua.
As primeiras luzes no
domínio do português vieram com o aparecimento, em 1904, da Ortografia
Nacional, elaborada pelo competente foneticista e ortógrafo lusitano
Gonçalves Viana. Aperfeiçoadas as suas recomendações com a eliminação de alguns
exotismos, as propostas de Viana serviram de base para a reforma oficial da
ortografia portuguesa de 1911. No Brasil, esta reforma simplificadora recebeu o
beneplácito de Silva Ramos no seio da Academia, e no magistério pela acolhida
de Mário Barreto, Sousa da Silveira, Antenor Nascentes, Clóvis Monteiro e
Jaques Raimundo, para ficarmos apenas com os mais representativos professores
do Rio de Janeiro.
Aceitando os argumentos
técnicos do nosso homenageado, acolhe esta Casa sua proposta de adoção da
reforma portuguesa na sessão de 11 de novembro de 1915. Essas núpcias entre as
duas Academias duraram pouco, pois, em 1919, resolveram nossos confrades de
então abandonar o acordo, pondo por terra tudo o que se havia deliberado sobre
a magna questão ortográfica. O retrocesso muito magoou a Silva Ramos, que
resolveu não mais tratar do assunto com seus pares.
O argumento que nesta Casa
se levantou contra a proposta incidia numa falsa razão ainda hoje trazida à
baila em debates dessa natureza: a lusitanidade da pronúncia respeitada pelo
acordo e tão natural ao autor de Pela Vida Fora. Havendo diferenças
visíveis na pronúncia de brasileiros e portugueses, era impossível um sistema
gráfico único para as duas nações, justificavam.
Ora, falso o argumento,
porque o sistema ortográfico não é essencialmente fonético mas fonológico, isto
é, só leva em conta as unidades fônicas que têm valor lingüístico distintivo.
Vale isto dizer que um vocábulo como menino, diretor ou também
pode ser proferido diferentemente nas diversas regiões do Brasil e de
Portugal, mas só será representado na escrita, cá e lá, de uma única maneira. E
aí reside efetivamente a só responsabilidade de um sistema ortográfico. O fato
ocorre com toda língua espalhada no vasto território nacional ou entre nações
diferentes – como o espanhol, o francês, o inglês, o russo ou o árabe, por
exemplo –, mas para esses idiomas existe apenas um modo de se grafar a grande
maioria de seus vocábulos.
Entre brasileiros e
portugueses ainda não se chegou a uma razoável unidade porque se tem insistido
em que o sistema ortográfico – argumento nem sempre verdadeiro – com a
utilização excessiva de notações gráficas (como acentos, consoantes mudas e até
o hífen) leva o falante a pronunciar “corretamente” as palavras dentro da
diversidade fonética existente em todo o espaço da lusofonia. Aqui está o
calcanhar de Aquiles que tem impedido a tão sonhada unidade gráfica no seio da
Academia Brasileira de Letras e da Academia das Ciências de Lisboa: quer-se uma
unidade e se ameaça ela com os fatores da diversidade.
A proposta de 1915 de Silva Ramos e dos confrades que a subscreveram,
adotando o sistema oficial português, assinalaria o primeiro passo no sentido
da pretendida unificação. Posta em prática por largo tempo, viriam fatalmente
as emendas para se alcançar a unidade a que tanto aspiramos como um dos fatores
de difusão da língua portuguesa no mundo.
Os argumentos de Silva Ramos
contra propostas menos científicas acabaram vitoriosos com a aprovação do Formulário Ortográfico de 1943, revisto
em pequenas alterações de 1971, que consubstanciava a velha lição de Gonçalves
Viana.
De todo este percurso intelectual
e acadêmico de Silva Ramos como filólogo abalizado e como mestre da língua
exemplar resta-nos, nesta passagem do sesquicentenário de nascimento, assumir
o compromisso de levar avante sua obra e suas lições.
Notas:
1 - Devo a pesquisa à minha colega Maria Aparecida Ribeiro, professora da Universidade de Coimbra e diretora do Instituto de Estudos Brasileiros.
2 – Estatística levantada na tese de Cláudio Cezar Henriques Atas da Academia Brasileira de Letras – Presidência Machado de Assis. Vol. 2 da Coleção Austregésilo de Athayde. Rio de Janeiro, Academia Brasileira de Letras, 2001.
3 – Discurso de Posse de Ivan Junqueira e Discurso de Recepção de Eduardo Portella. Rio de Janeiro, Academia Brasileira de Letras, 2000.
4 – Discurso do Presidente, Sr. Barbosa Lima Sobrinho. Sessão de 28 de maio de 1953. In: Revista da Academia Brasileira de Letras, Ano 52. Vol. 85. Anais de 1953. Rio de Janeiro, ABL, 1953, págs. 237-240.
5 – Manuel Bandeira, Poesia e Prosa. Vol. II, Prosa, págs. 1167-1168. Rio de Janeiro, Editora José Aguilar, 1958.
6 – Apud Maximiano de Carvalho e Silva, Sousa da Silveira. O Homem e a Obra. Sua Contribuição à Crítica Textual no Brasil. Rio de Janeiro, Presença / Pró-Memória / Instituto Nacional do Livro, 1984, págs. 11-12. Também a este mesmo propósito se manifesta M. Bandeira em carta a Alphonsus de Guimaraens Filho, de 21 de fevereiro de 1942: “Não tenho no entanto a felicidade de estar fazendo sonetos tão bonitos como esses que você me mandou. Imperfeições e deficiências? Sinceramente não encontro nenhumas. O primeiro verso do primeiro soneto tem onze sílabas; e o quarto verso do primeiro e do segundo soneto só tem nove. Mas depois da minha antologia romântica e da edição de Casimiro, do Sousa da Silveira, um grande poeta e grande versejador como você não tem que dar satisfações a ninguém: nós é que temos de descobrir, como eu e o Silveira fizemos, os motivos secretos intuitivos que levam os poetas de verdade a pôr versos de 11 e 9 sílabas no meio de decassílabos. No caso dos seus sonetos estão transparentes os tais motivos, e quando você morrer (o que espera seja daqui a uns sessenta e tantos anos) e se fizer uma edição crítica de suas obras poéticas há de aparecer um Sousa da Silveira para o interpretar e defender das possíveis cavalgaduras do fim do século XX ... (Mário de Andrade e Manuel Bandeira. Itinerários. Cartas a Alphonsus de Guimaraens Filho. São Paulo, Livraria Duas Cidades, 1974, págs. 84-85.
7 – Silva Ramos, Pela Vida Fora. Rio de Janeiro, Edição da Revista de Língua Portuguesa, 1922, pág. 75.
8 – Id., ibid., pág.
119.
9 – Id., ibid., pág.
82.
10 – Id., ibid.,
págs. 222-224.
11 – Id., ibid.,
págs. 178-179.
12 – Id., ibid., págs.
119-120.
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